segunda-feira, novembro 30

uma história de Edu

(direto do blog da Ivana: doidivana.wordpress)

A INCRÍVEL HISTÓRIA DE EDU PRAXEDES

30 Novembro, 2009 por doidivana

Não me lembro a data certa em que Edu foi encolhendo, encolhendo, até ficar com pouco mais de cinco centímetros. Arranjei-lhe caminha, travesseirinho, mas ele todo era desconforto e dor. Certa manhã, pediu-me com sua voz quase sumida:
- Água, quero água.
Trouxe – lhe num conta-gotas, mas antes que eu pingasse em sua minúscula língua, ele esbravejou:
- Não, sua idiota, quero água para viver. Preciso morar na água.
Atendendo prontamente ao seu pedido, comprei um aquário e mergulhei-o na água fresquinha. A pele ressecada foi se tornando viçosa de novo. Edu melhorava a olhos vistos, embora fosse o mesmo de sempre, a neurastenia em forma de gente.
Falei-lhe sobre comida de peixe, ele achou ótima idéia, era isso mesmo que queria. A princípio comia com apetite a ração que chovia do pacote, mas ao fim da primeira semana, ouvi-o reclamar enter os dentes:
- Sempre a mesma merda.
Tentando amenizar seu mau-humor, comprei uma linda sereia de pedra e coloquei no fundo do aquário. Esperei. Olhando-me fixamente nos olhos, ele pôs-se a vociferar:
- Não pense que pode me alegrar com essa bugiganga ridícula.
Edu nunca respeitou as mínimas regras da boa convivência.
- Eu só queria…
- Eu sei o que você queria. Você queria que eu fosse uma criatura alegre, que agradecesse a comida infame que você me dá e ainda louvasse a Deus pela graça de existir.
- Edu, o seu problema…
- Se você fosse mais esperta, entenderia que não existe o meu problema e o seu problema, o que existe é O Problema e para este, minha cara, não há sereia que dê jeito. Dizendo isso voltou-se para a parede, que era o seu jeito de encerrar o papo.
No dia seguinte, tentando fazer as pazes, bati no vidro. Ele veio gritando:
- Quando você vai parar com essa mania de bater no vidro? Quer me enlouquecer? Já disse mil vezes que quando quiser falar comigo, basta chamar. Surdo eu ainda não fiquei.
Era preciso ter paciência. Covardia brigar com aquela miniatura de homem.
Na semana seguinte eu passava café na cozinha quando escutei uma musiquinha. Edu Praxedes assobiando calmamente? Pé ante pé me aproximei e não me contive:
- Que linda canção, Edu!
Com o corpo estremecido de susto, defendeu-se como pode.
- Não seja ridícula, que motivos eu teria para cantar?
- Quem sabe a sereia?
- Por falar em sereia, dá pra tirar essa geringonça daqui? Ela é muito grande, me rouba espaço e polui visualmente minha inútil paisagem – era esta a música que Edu assobiava.
Sem esticar a discussão, atendi prontamente ao seu pedido. Mas não desisti. Dois dias depois, cheguei com surpresa maior: uma peixa para Edu Praxedes, uma peixa de verdade. Seus olhinhos brilharam, mas logo enrugou a testa. Olhava para mim, olhava para a peixa, olha de novo para mim, olhava para a peixa, até que desembuchou:
- Mergulhe de uma vez esta pobre criatura neste poço de tédio, antes que ela morra em suas mãos.
Melhor que o esperado. A peixa entrou desenxabida, conhecendo o espaço devagar. Quando balançou a cauda e deu sua primeira corrida, Edu perguntou-me com o descaso habitual:
- Essa infeliz já tem nome ou vai ficar anônima?
- Por isso não, respondi, é pra já. Que nome você sugere?
Depois de examiná-la atentamente, estourou numa gargalhada.
- Que tal Laura, como você?
Concordei de imediato, sem perguntar o porquê da risada. Ainda na minha presença pôs-se a contar a Laura que a comida era insuportável, que eu tinha mania de bater no vidro e que volta e meia algum amigo jogava bituca dentro do aquário.
Laura passava seus dias de boca aberta e olhos arregalados ouvindo os intermináveis discursos de Edu. Aos poucos foi emagrecendo, recusava-se a comer, nadava de cabeça baixa, arrastando a cauda devagar. Seus olhinhos redondos foram ficando vesgos. Resolvi ter com ela uma conversa a sós. Apanhei-a numa xícara e fomos as duas para a cozinha. A portas fechadas ficaríamos mais à vontade.
- Laurinha, querida, o que está acontecendo? Você anda tão tristinha, quase não come nada, é o chato do Edu Praxedes, não é? Você quer sair de lá?
- Não! – ela gritou numa retomada de fôlego fantástica.
Em seguida caiu num pranto de cortar o coração. Quando parou de chorar confessou-me:
- Eu estou apaixonada por ele.
- Santo Deus! É o pior que podia acontecer.
Muito brava, Laura disse que eu estava completamente enganada, que eram muitas as virtudes daquele ser tão magnífico. Elogiou sua vasta sabedoria, a beleza dos seus olhos, seu porte atlético e o modo exuberante como ele gesticulava. Não sairia dali por nada do mundo.
Meses se passaram. Para minha surpresa, Edu tornava-se cada vez mais atencioso. Ficava horas calado, ouvindo as histórias de Laura, sorrindo das bobagens que ela dizia, até a comida passou a comer com prazer.
Certa noite, Alex veio me visitar. Depois de muito vinho e alguns beijos, fomos nadar nas águas dos meus lençóis. Lá pelas tantas, morta de sede, fui à cozinha e mal pude acreditar no que vi: Laura e Edu entrelaçados no mais lindo mergulho de amor. Dei meia-volta e matei a sede na torneira do banheiro. Ai de mim se interrompesse!
No dia seguinte despedi-me de Alex, fechei a porta e tremi de pavor ao olhar o aquário. Laura boiava na superfície, com a barriga inchada e a boca roxa. Os olhinhos vesgos não brilhavam mais.
- Laura! – gritei desesperada.
Edu, logo abaixo, me olhava indiferente. Perguntei-lhe aflitíssima:
- O que foi isto? O que aconteceu à Laura?
- Eu a matei.
- Você está brincando?
- Não, não estou. Eu a matei. Não suportava mais aqueles olhinhos vesgos me encarando o tempo todo. Vesgos e apaixonados. Estavam me fazendo mal Antes que a situação ficasse irremediável resolvi pôr um ponto final nessa história.
Fiquei horrorizada. Que estupidez, que crueldade!
- Querida Laura, se a vida já é difícil, depois deles ficaria insuportável. A morte é mais suave.
- Desde que seja a morte dela, não é?
- A corda sempre arrebenta do lado mais fraco.
- Seu puto – berrei desesperada – você é o lado mais fraco. Não vê que foi você que arrebentou?
Me pedindo que falasse mais baixo, virou-se para o canto e fingiu dormir. Encostei no batente da porta e escorreguei até cair no chão. Fiquei lá, com a cabeça vazia de idéias, horas a fio.
De repente ouvi o telefone tocar. Era Alex me chamando para o almoço. Dei-lhe uma desculpa qualquer, um imprevisto, o almoço ficava para outro dia. De dentro do aquário Edu me abriu um sorriso verdadeiro, o primeiro de toda sua vida. Seus olhos estavam redondos e vesgos.
Catei Edu e fui até à janela. Com as mãos no vazio, abri os dedos devagar.

conto do meu livro Histórias da Mulher do Fim do Século

sábado, novembro 28

Cavaleiro Solitário

Atravessei a rua
Atravessei a vida
Acreditei que era perto e fui lá ver
Acreditei que era perto e fui...
Cavaleiro solitário
Caminha com sua estrela
E a fé no vaticínio das visões
Inventa o próprio tempo e estações
Atrai as reações mais loucas

Pessoas diferentes são irmãs
Todos seus companheiros são iguais
Iguais e diferentes e irmãos
Mil trovões, num encontro de titãs, ô, ô
Perdão oh minha amada
Eu nunca voltarei
Do mesmo modo
Como um dia eu saí
A vida não tem "replay"
Há muito eu sei

Foi tudo maravilhoso
Até a hora em que eu parti
Há muito tempo
Cavaleiro Solitário...

(Eu quero
Eu quero ver
Eu quero ver a cruz
Eu quero ver a cruz vazia
Eu quero ver o som da alegria
Eu quero ver a cor da tua fantasia.

Eu quero
Eu quero ter
Eu quero a vida
Eu quero a vida inteira
Eu quero o som da brincadeira
Eu quero a cor da tua terça-feira.

O carnaval, o feriado nacional
Da vida em festa
Fenomenal, sensacional
Eu quero o sorriso
Liso, belo e preciso da loucura ocidental.)
*obs: a versão que acabo de ouvir não tem os versos entre parênteses. resta procurar se gonzaga está post-mortem.

(Gonzaguinha dando seu recado nesse dia de recados)

quase de manhã no rádio do carro

Diga Lá, Coração

Gonzaguinha

(São coisas dessa vida tão cigana
Caminhos como as linhas dessa mão
Vontade de chegar
E olha eu chegando!
E vem essa cigarra no meu peito
Já querendo ir cantar noutro lugar.)

-> não!

Diga lá, meu coração
Da alegria de rever essa menina,
E abraçá-la,
E beijá-la.

Diga lá, meu coração
Conte as estórias das pessoas,
Das estradas dessa vida.
Chore esta saudade estrangulada
Fale, sem você não há mais nada
Olhe bem nos olhos da morena e veja lá no fundo

A luz daquele sol de primavera.

Durma qual criança no seu colo
Sinta o cheiro forte do teu solo
Passe a mão nos seus cabelos negros
Diga um verso bem bonito e vá embora

Diga lá, meu coração
Que ela está dentro do teu peito e bem guardada
E que é preciso
Mais que nunca
Prosseguir,

Espere por mim, morena

Espere que eu chego já
O amor por você...

Diga lá, meu coração
Que ela está dentro em peito e bem guardada
E que é preciso
Mais que nunca
Prosseguir,
Prosseguir.

Espere por mim, morena
Espere que eu chego já
O amor por você, morena...

Espere por mim, morena
Espere que eu chego já
O amor por você, morena...

sexta-feira, novembro 27

pra sair do seu umbigo

só pra lembrar que nossa dor não é nada:

(foto de James Natchwey, intitulada Inferno; Sudão, 1993. Direto do blog.innerpendejo.net)

lua cheia

e eu quase cheia de tudo isso.

vontade de ser aquela...
aquela estranha

louca soberana.

quinta-feira, novembro 26

aprendiz

tantas ele fez
ou não fez

que a frustração tomou conta
de todas as nossas lembranças

na verdade, lembranças de mim

o pior é não ter
e o melhor é aprender
a não sofrer

segunda-feira, novembro 23

mistério

num belo dia, ou talvez num dia nublado,
algo acontece dentro do corpo que carregamos.

a velhice é o mistério das sensações,
o não-saber, a dor que caminha a esmo,
buracos negros que se abrem no universo da alma.

é o momento de driblar o tempo
numa corrida às escuras.

quarta-feira, novembro 18

constatação

não tem sono dos justos.

domingo, novembro 15

ordem

por mais que eu faça, as coisas não se mantém em seus lugares.
há montes
de roupas, copos, jornais
de pó, de mato.

me pergunto onde é a saída.

quarta-feira, novembro 11

músicas

havia sons
perdi-os.
por enquanto, espero.

domingo, novembro 1

de manhã no rádio do carro

Atravessei sete montanhas
Pra chegar no mar
Porque nasci, nasci para bailar

Abri veredas e cancelas pra poder passar
Porque nasci, nasci para bailar
Danço bolero, danço samba, danço chá-chá-chá
Por que nasci, nasci para bailar

Rimo Raimundo com a virada desse mundo
Vou no raso, vou no fundo
Mas um dia eu chego lá

Rodo Bandeira, dou pernada dou rasteira
Toco surdo e frigideira
Atabaque e ganzá

Porque nasci, nasci para bailar...

(João Donato, que deu o ar da graça na cidade)